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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

O PREÇO DA INCONSEQUÊNCIA

Olá, sou o João, aquele rapaz de vinte e três anos que acabou de morrer num acidente de moto.
            Meu acidente foi feio: um carro parou na minha frente. Eu poderia ter evitado se estivesse no limite que a rodovia pedia, mas estava em dobro da velocidade; não tive como frear.
  Quando vi o carro à minha frente, foi estranho: não consegui pensar em nada. Não consegui parar, meus sentidos sumiram e não vi mais nada.

Acordei do outro lado da pista. A pancada me fez voar por cima do veículo e cair. O capacete soltou da cabeça e minha cabeça bateu forte no asfalto. Vi o desespero do motorista que parava à minha frente, ainda na rodovia. Ele pedia desculpas insistentemente, dizia que ia entrar numa loja do outro lado e por isso reduziu a velocidade. Mas, poxa, ele podia ao menos ter ligado a seta. Não sei se adiantaria — eu estava correndo demais.

Começaram a chegar pessoas para me ajudar. Reconheci muitos rostos, mas não conseguia me comunicar. Vi o desespero deles.

O veículo de assistência da rodovia chegou correndo, sinalizando o local. Alguns vieram até mim. Verificaram meus batimentos, tentaram abrir meus olhos, mas o sangue que saía do nariz e dos ouvidos era muito. Senti o desespero do profissional. Ele ligou imediatamente para a ambulância e ficamos ali, esperando.
  Colocaram-me numa maca, um colar no pescoço, um cinto e uma capa de alumínio no corpo, e fiquei imóvel. Ao redor, inúmeras pessoas queriam ajudar, mas os curiosos eram a maioria. A empresa da rodovia não parou o trânsito: com cones, fizeram desvios, e o fluxo seguiu normalmente.

Ouvi alguém dizer: “Meu Deus, é o João, filho da dona Maria e do seu Pedro!”. Sim, era eu mesmo.

De longe, a sirene do resgate. As pessoas ficaram apreensivas até o carro encostar. O médico desceu rápido, pediu que todos saíssem de perto, abriu meu olho e com uma pequena lanterna buscou algum reflexo. Apertou meu pulso e gritou: “Vamos, o estado dele é grave, ele está muito machucado!”.

 Colocaram-me no carro, que saiu a mil para o hospital mais próximo. No caminho, percebi que a coisa não estava boa. O médico e o enfermeiro colocaram uma máscara de ar e aplicaram algo para meu coração não entrar em choque. Eu sentia o corpo todo quebrado — nem pernas nem braços respondiam, minha cabeça estava pesada, sentia meu crânio fraturado. A dificuldade para respirar, mesmo com a máscara, era enorme. Via um sinal de frustração na equipe, mas eles lutavam pela minha vida. A sirene me incomodava, o barulho era demais. Falavam em termos médicos, mas pelos gestos senti: estava morrendo.

Chegando ao hospital, uma equipe me aguardava. Tudo foi rápido. Eu só enxergava o teto, pessoas correndo e gritando. Na sala de cirurgia, senti meu coração parar. O barulho de fundo era de uma máquina que fazia bip..bip; que mede o batimento, mas parecia o som de alguém morrendo. Uma das moças pegou um desfibrilador, ligou, colocou no meu peito. Levei um baita choque — saí da maca, mas meu corpo não respondeu. Outro choque. Outra vez saí da maca. Que sensação estranha. Na terceira tentativa, o olhar deles foi de tristeza. Não conseguiram me animar. A médica anunciou o horário da morte — procedimento obrigatório. Senti a frustração em seus olhos: estavam ali para salvar vidas e acabavam de me perder. Saíram com a cabeça baixa, perdendo-se no corredor.

Veio outra equipe, tirou os equipamentos, limpou-me — eu estava todo ensanguentado —, cobriu-me. E ali fiquei, olhando para o teto.
Horas passaram. Eu ali, sem saber o próximo passo. Homens chegaram, colocaram algo no meu dedo do pé — talvez uma identificação. Empurravam a maca para dentro de uma van e me levaram a um lugar escuro e gelado. Onde estava? Fiquei horas naquele lugar. Comecei a entrar em pânico: ninguém ao lado, e tudo ficava mais sombrio.

Depois de algumas horas, colocaram-me numa mesa ainda mais gelada. Um médico veio, apalpou-me. Olhou minhas pernas, meus braços, conversou com um rapaz ao lado: “Mais uma mãe que vai chorar a morte do filho. Um rapaz novo, tinha a vida toda pela frente. Estou cansado dessa profissão — é muito jovem inconsequente tirando a própria vida. Penso nos meus filhos e netos e não desejo esse fim trágico. Espero que os familiares se recomponham. Que tristeza.”
Aquilo foi uma facada no peito. Eu havia me esquecido da minha mãe. Meu Deus, que sofrimento será para ela quando o médico disser que eu morri. E meus irmãos? Meus avós?
O médico me chamou de inconsequente. Será? Gostar de pilotar moto é ser inconsequente? Agora é tarde para discutir. Estou morto, e acabei de matar meus familiares também.

Para minha surpresa, colocaram-me num freezer. Escuridão total. Ainda bem que não tenho claustrofobia — senão morreria, mas como, se já estou morto? Fiquei ali, olhando para o nada, aguardando o que viria. De repente, um clarão. Alguém me puxou para fora. Ouvi: “Tem certeza que quer ver? Está preparado?”. Ouvi um “sim”.
Quando me descobriram, vi que era meu pai. Levei um choque — ele sempre foi ausente na minha vida, e há horas em que jogo toda a culpa nele por eu ser tão “inconsequente”. Mas o que ele fazia ali?
— Oh, meu filho, por que você fez isso? Era muito cedo para você partir. Sua mãe está destruída. Desculpe por ser tão ausente — parte da sua revolta é minha, e hoje eu também morro com você.
Haha. Quantas falsidades. Ele nunca gostou de mim, e agora que estou morto vem com esse discurso barato? Me poupe. Espero que morra com a consciência pesada por não ter sido um bom pai. Vai embora e leve essas lágrimas de crocodilo contigo, inútil.

Novamente me levaram a outro local — parecia uma funerária. Assim que cheguei, avistei familiares: minha irmã, meu avô, meu pai, meus primos. Meu pai escolhia um caixão, dizia que eu merecia algo decente.
Meus primos trouxeram roupas legais para me vestir, cobriram-me de flores. Eu estava bonito. Passaram maquiagem no rosto para disfarçar os ferimentos. De novo, fiquei trancado — agora dentro de um caixão. As flores me faziam mal, sou alérgico. Queria espirrar, mas nada saía. O local estava abafado e quente. Sensação estranha.
Não sei por quanto tempo fiquei ali. Vieram uns homens, me colocaram de novo num carro — se for somar, já devo ter rodado uns bons quilômetros. Entrei num recinto amplo, arejado, até bonito. Colocaram o caixão num suporte.

Para minha surpresa, a primeira pessoa a chegar ao meu lado, amparada pelos familiares, foi minha mãe. Meu Deus, que tristeza.
Ela simplesmente caiu sobre meu corpo e chorou muito. Passava a mão nos meus cabelos, pedia que eu acordasse. Sacudia meu corpo, gritava desesperada. Eu ali, imóvel, vendo tudo e sem poder fazer nada, comecei a refletir sobre minha vida. Nenhuma mãe está preparada para enterrar um filho, e eu permiti essa desgraça na vida dela. Que sofrimento vê-la daquele jeito. Como será sua vida daqui para frente? Por que fui tão inconsequente? Poderia ter seguido seus conselhos — ela sempre dizia: “Vai devagar, essa estrada é perigosa”, “Olha, fulano morreu de acidente de moto, toma cuidado”. Eu sempre pensei que comigo nada aconteceria. Afinal, sempre fui o fodão.

Minha mãe foi levada para um canto da sala. Os demais familiares chegaram, chorando ao redor do caixão. Até o João, safado, que me devia dinheiro, estava desolado em cima do caixão. Poxa, quanta gente veio dar o último adeus. Fiquei até emocionado. Não imaginava que era tão querido. Meus familiares estavam abalados — eu não tinha noção de quanto era amado.
Horas passaram. Todos foram embora, e eu, de novo, fechado no caixão, contemplando o aroma das flores, a vontade de espirrar e a escuridão.

Novamente enxerguei a luz. Abriram a tampa, e lá estava eu. Muitas pessoas ao redor, meus amigos inseparáveis chorando sem parar. E lá vinha, outra vez, minha mãe.
— Filho, saiba que a mamãe te ama. Não sei como será minha vida daqui para frente. Não sei se terei forças para enfrentar o dia a dia com sua ausência.
    Aquela palavra me matou de verdade.

Todos aos prantos, fecharam o caixão com um baque surdo que ecoou dentro de mim. Movimentaram-me, o mundo balançando sob as mãos que carregavam meu último abrigo. Céu aberto, nuvens pesadas, ar frio que eu já não sentia. Uma procissão silenciosa, interrompida só por soluços.

Desci.
   Lentamente, o vazio do buraco me engoliu. Terra começou a cair — primeiro um punhado, depois uma enxurrada de sombra. Grãos batiam na madeira como chuva de pedras. Escuridão total, peso crescente, o mundo lá fora ficando cada vez mais distante.

E então, a última pá. O último toque de luz sumiu. Só restou o cheiro de terra úmida, o aperto das paredes invisíveis, e o silêncio — aquele silêncio que não é paz, é ausência.

E eu, no escuro, afundado no meu próprio erro, percebi que aquela escuridão não era só a da cova. Era a que eu tinha deixado dentro dela.

Chorei.
    Chorei sem lágrimas, sem som, sem ar.
    E num último suspiro de alma que nem corpo tinha mais, sussurrei para o nada — e torci que, de algum modo, o vento levasse até ela:

— Mãe… me perdoe.



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